segunda-feira, 22 de maio de 2017

Terra sonâmbula, de Mia Couto



















Por uma estrada devastada pela guerra caminhavam um velho, Tuahir, e um menino, Muidinga. O jovem seguia mancando, resultado de uma doença que há pouco quase o matara. O velho tomou conta do pequeno quando todos o haviam deixado para trás. Muidinga tinha esperança de reencontrar seus pais, por mais que Tuahir diga que eles provavelmente não queiram vê-lo, já que uma criança em tempos de guerra é como um fardo pesado.

Encontram um ônibus queimado, atravessado na estrada. Tuahir propõe que eles se abriguem no local e o menino fica com medo que bandidos os ataquem, além de sentir-se mal por diversos corpos carbonizados que ali se encontram. Decidem abrir uma vala e enterrá-los.

Um último corpo, que não estava queimado, havia sido atingido por uma bala e tinha a camisa cheia de sangue. Carregava com ele uma mala na qual havia alguns alimentos, roupas e cadernos. O velho interessava-se apenas na comida, mas Muidinga ficou curioso pelo que havia escrito nos papéis.

À noite Muidinga começa a chorar e Tuahir pede que o garoto pare, pois em breve a guerra acabará e tudo será como antes. Ele sugere que acendam uma fogueira com os cadernos encontrados e o menino usa apenas a capa de um deles para acender o fogo. Depois se empenha em ler os escritos, a princípio lentamente, juntando letra por letra, até pegar o jeito. Tuahir pede que ele leia alto, para ajudá-lo a dormir.

CADERNO DE KINDZU

Kindzu narra sua vida desde a sua infância. Seu nome é o mesmo dado às palmeiras com as quais seu pai, Taímo, fazia aguardente. Pescador solitário, não tinha qualquer ambição e, pelo contrário, orgulhava-se de viver com pouco. Taímo ainda era sonâmbulo e acreditava que seus sonhos eram verdades reveladas a ele, às quais compartilhava com sua família, que não podia duvidar de suas palavras.

Kindzu lembra-se do dia em que seu pai, todo arrumado, anunciou com orgulho que o país havia conquistado a independência. Em homenagem o seu próximo filho se chamaria Vinticinco de Junho – acabou recebendo o nome de Junho, ou Junhito apenas.

Tempos depois veio a guerra, primeiro na forma de notícias distantes, depois em tiroteios cada vez mais próximos. A mãe de Kindzu já não podia cultivar a terra em nenhum lugar, a família tornava-se cada vez mais miserável. Taímo acreditava que a pobreza era a melhor forma de defender-se contra os roubos.

Em um de seus delírios, o pai de Kindzu declarou que alguém da família iria morrer: seria o filho mais novo, o Junhito. Para defendê-lo ordenou que o menino fosse morar junto às galinhas, coberto de penas e imitando seu cantos. Isolado dos humanos, Junhito já nem sabia mais falar, até que desapareceu misteriosamente: os vizinhos diziam que Taímo, bêbado, o havia confundido com uma galinha torceu seu pescoço; outros acreditavam que ele havia sido roubado junto a outras aves; Kindzu suspeita que sua própria mão possa tê-lo libertado às escondidas.

O sumiço de Junhito transtornou ainda mais a família de Kindzu: seu pai passava o tempo todo embriagado, deitado em seu barco em meio às dunas. Certo dia encontraram seu corpo com uma espuma vermelha borbulhando pela boca, nariz e ouvidos. O defunto foi lançado ao mar.


A mãe de Kindzu consultou um feiticeiro para saber mais sobre a morte de Taímo e foi orientada a construir uma casa e que guardasse lá dentro o barco de seu finado marido, que poderia retornar da morte. Além disso, todas as noites ela preparava uma panela de comida que Kindzu levava ao local. No dia seguinte a panela estava sempre vazia.

Um dia Kindzu viu um homem vestindo roupas vermelhas e pulseiras de feitiços entrar na casa após ele servir a comida. Ao avisar sua mãe sobre a aparição do estranho, ela disse que se tratava de seu pai. Kindzu não acreditava nessa história, mas não podia contrariá-la: solitária, a mulher ainda reclamava que ele era o único filho que havia lhe sobrado a esta altura, o pior de todos.

A guerra esvaziava as vilas da região, casas ficavam destruídas e o mato tomava conta das construções. Somente um comerciante permanecera no local Surendra Valá, um indiano que sofria perseguição devido a sua raça. Kindzu, entretanto, tinha amizade com o homem, passando todos os dias em seu estabelecimento – e isso preocupava a sua família, com medo que ele se afastasse de sua cultura. Surendra brincava que eles eram de uma mesma raça, a raça dos índicos, já que suas terras compartilhavam do mesmo oceano.

Certa vez o indiano discutia com um freguês que tentava roubar seu estabelecimento quando entrou um homem com roupas vermelhas, igual ao que Kindzu havia visto entrar na casa de seu pai. O ladrão saiu do local o homem pediu a Surendra alguns panos. Depois o comerciante explicou a Kindzu que aquele era um naparama, um guerreiro abençoado por feitiços que o protegiam das balas.

Uma noite o comércio de Surendra foi invadido e incendiado, Kindzu foi o único a consolar o indiano, que decidiu sair daquela região. Ele dizia que não gostava de pretos, nem de branco, nem mesmo de indianos: ele gostava de pessoas que não tinham raça, como Kindzu.

O garoto também tinha vontade de fugir daquele lugar e procurou o pastor Afonso, seu antigo professor, para ter alguma orientação. Chegando em sua casa, encontrou todos em luto: ele havia sido assassinado e suas mãos foram cortadas e penduradas na mesma árvore sob a qual ele insistia em dar aulas, mesmo após sua escola ter sido queimada.

Desesperado por estes acontecimentos, Kindzu decidiu que queria tornar-se também um naparama. Uma parte dele, no entanto, desejava encontrar um canto sossegado para viver. De qualquer forma, ele não deveria continuar vivendo ali.

Durante um sonho Kindzu recebeu a visita de seu pai, que ameaçava persegui-lo caso deixasse sua terra. Atormentado por esta visão, o menino procurou os velhos da aldeia e perguntou-lhes sobre como tornar-se um guerreiro: eles o orientaram a não se envolver com a guerra e, além disso, os naparamas eram competência dos feiticeiros do norte. Já sobre um lugar tranquilo em que Kindzu pudesse viver, sugeriram que ele procurasse nganga, o adivinho do local.

Kindzu procurou o tal homem, que lhe contou que o seu sonhado refúgio era muito distante e que havia duas formas de partir: indo embora, ou enlouquecendo, como seu pai havia feito. Em sua viagem o nganga aconselhou que seguisse pelo mar, depois andasse pela areia que não guardava pegadas, para despistar o espírito de Taímo, até encontrar o lugar onde ninguém o conhecesse.
Ao despedir-se de sua mãe, ela mal falou. Delirava que estava grávida.



Terminando o primeiro caderno, Muidinga percebe que Tuahir já está dormindo. Foram três noites a ler os escritos, sendo que nada demais aconteceu nesse intervalo. O garoto apressava-se nas tarefas, como procurar lenha, carregar água e preparar comida, apenas para ter mais tempo na leitura. Várias perguntas habitavam a mente de Muidinga: como era possível ele saber ler? Quem era Kindzu? O velho já estava aborrecido com a fixação do menino.

Chamando Tuahir de tio – o que ele não gostava – Muidinga perguntava sobre seu passado, mas o homem se negava a contar qualquer coisa: dizia apenas que ele o havia encontrado abandonado. O menino suspeitava que ele estivesse escondendo algo.


Muidinga acorda com algo viscoso passando por seu rosto: é a língua de um cabrito que invadiu o ônibus abandonado. Tuahir expulsa o bicho, fala em comer o animal, mas o menino decide prendê-lo, pois a presença dele o faz lembrar-se da vida na aldeia. Muidinga encontra uma árvore onde amarra uma corda, surpreso por não ter visto esta planta anteriormente.

O menino pega um galho e rabisca na areia duas palavras, azul e luz, percebendo que uma era quase o avesso da outra. Assusta-se ao perceber que estava escrevendo. Em seguida lembra-se de sons distantes, como o de crianças na hora do recreio. Corre para o ônibus a contar para Tuahir sobre sua descoberta: ele tinha um passado, havia estudado em uma escola! O velho, entretanto, nega e diz que o havia acompanhado desde o nascimento: ele era seu pai, por isso não gostava de ser chamado de tio.

Um barulho no mato faz com que os dois parem, atentos: um elefante ferido passa próximo ao ônibus. Tuahir conta que aquilo é obra dos que fazem a guerra, que vendem os dentes do animal.


Após instantes de um triste silêncio, Muidinga conta a Tuahir que tem pensado no Junhito, imaginando que era ele o tal personagem. O velho brinca que se o fosse, já teria virado um ensopado de galinha, e pede que o menino pare de pensar demais.

Após passar o dia todo calado, Muidinga começa a leitura do segundo caderno.

CADERNO DE KINDZU

Kindzu ia ora pelo mar, ora por terra firme, carregando seu barquinho. Os rastros que os remos deixavam no mar o lembravam da orientação do adivinho, de não deixar pegadas. A maldição o perseguia: a vela do barco se rasgou e se transformou em peixes, o remo formou folhinhas verdes e se transformou em árvore. Ele passou a remar com as mãos e seus dedos ganhavam escamas, parecia virar peixe.

O mais incrível aconteceu quando Kindzu pôs-se a caminhar pelas areias do Tandissico: diversas mãos subiam de baixo da terra e um fantasma surgiu, cavando uma cova: ele dizia que o chão do mundo era o teto de outro mundo, que tinha ainda mais mundos abaixo dele, até o centro, onde morava o primeiro dos mortos. O fantasma o encaminhava para a cova e Kindzu sentiu-se cair em seus braços, apagando subitamente.


À noite o pesadelo havia passado e Kindzu não conseguia mais habitar as areias, então seguiu com seu barco mar adentro. A lua tinha as pontas viradas para cima e seu pai havia lhe ensinado que aquilo era sinal de desgraça. Kindzu sentia que não tinha culpa do que estava ocorrendo: ele sempre seguiu os conselhos dos mais velhos, fez a cerimônia de inauguração do barco, batizou-o com o nome de seu pai, Taímo… Mas agora sentia vontade de voltar à sua casa, à rotina da aldeia. Apesar disso ainda tinha a esperança de se tornar um guerreiro naparama e estava motivado a seguir viagem.

Numa das noites em alto mar Kindzu teve outro sonho: os afogados surgiam do fundo das águas, entre eles seu pai. O velho reclamava da vida no além e não dava atenção ao que o filho queria lhe contar, sobre seu destino como guerreiro. Pelo contrário, Taímo o julgava por andar em busca de um destino que não era o seu e por isso era castigado pelos antepassados. Determinou que Kindzu não realizaria seus sonhos enquanto sua sombra o perseguisse e fez uma ameaça: numa tarde surgiria uma mampfana, a ave que mata as viagens, de asas abertas sobre uma alta árvore. Nessa ocasião deveria chamá-lo.


Antes de acordar, Kindzu perguntou sobre sua mãe. Taímo contou que a mulher havia se juntado com outro homem, deixando-o viúvo-solteiro. Kindzu sentiu pena do velho e alongou ainda mais seu sonho, pois desejava sua companhia. Compartilharam algumas histórias engraçadas até que o velho se despediu, dizendo que o menino o havia inventado em um sonho de mentira e que como castigo ele nunca mais iria sonhar, a não ser que Taímo permitisse.




Ao acordar, Muidinga descobre que a corda que amarrava seu cabrito havia sido cortada. Tuahir se enfurece, pois acredita que o animal chamou a atenção dos bandidos que passavam pela estrada. Porém amanhece e ninguém aparece, deixando-os despreocupados.

Durante o dia a fome aperta e Muidinga mal consegue falar. Tuahir imagina que o garoto esteja pensando novamente em seus pais e ele lhe diz que ambos morreram por balas de bandidos. Como o menino não se anima, o velho o chama para entrarem na mata, em busca de alimento.

Muidinga estava com medo de se perderem, quando encontraram um terreno de machamba (cultivo agrícola) abandonado. O pequeno apanhou uma mandioca, mas Tuahir mandou que ele não a comesse, pois a raiz tinha um veneno que havia sido a causa de sua doença. Muidinga aproveitou para perguntar mais sobre como o homem o havia encontrado.

Tuahir explicou que estava em um campo de deslocados quando o chamaram para ajudar a enterrar seis crianças falecidas. Enquanto arrastavam seus corpos, o velho percebeu que uma delas agarrava a terra com seus dedos. Ele argumentou que o garoto era seu sobrinho e o recuperou, comprometendo-se a cuidá-lo. Tuahir identificou que a criança tinha a doença mantakassa, causada pela ingestão de uma maquela, uma mandioca que fermenta veneno.

A saúde do garoto piorou e Tuahir estava preparado para vê-lo morrer, porém subitamente houve uma melhora. O velho batizou o menino de Muidinga, mesmo nome de seu filho mais velho, que havia ido para as minas da África do Sul.

CADERNO DE KINDZU

Chegando à baía de Matimati, Kindzu avistou diversas pessoas andando pela praia. Elas estavam ali fugidas da guerra que assolava o interior. Ao desembarcar, foi orientado a voltar ao mar assim que possível, pois seria preso pelas autoridades mesmo que não houvesse justificativas para isso.

O antigo secretário administrador da região, Assane, surgiu para explicar melhor a Kindzu a situação: dias antes, sob uma forte tempestade, um navio que trazia donativos para a província chocou-se contra rochas que surgiram do fundo do oceano. Os responsáveis iniciaram um julgamento, acreditando que o acidente fora causado por alguma magia indígena. Pequenas embarcações foram ao navio para recuperar alguns mantimentos, porém afundaram-se todas ao mesmo tempo, de tão carregadas que estavam. O governo ordenou que o resgate dos donativos fosse feito de forma organizada, mas a população começou a suspeitar que os responsáveis eram culpados pelos desastres ocorridos. Para atender ao desejo de punição do povo, Assane foi preso e torturado, sendo liberado a poucos dias. Os administradores retornariam logo, por isso Kindzu precisava partir.

Antes de embarcar, Kindzu perguntou pelos naparamas e foi informado que eles só atuavam no interior da província. Ele ainda bebeu e dançou na cerimônia dos espíritos, sendo encaminhado ao seu barco na sequência.

Kindzu dormiu e teve muitos sonhos – nenhum com seu pai. Ao acordar, ainda no escuro, viu uma fogueira no meio do mar: seu barco se dirigiu sozinho ao local. No caminho, uma tempestade surgiu e caiu do céu um tchóti, um anão, na embarcação de Kindzu. Ele já ouvira falar sobre criaturas como esta da boca de seu pai, mas nunca acreditava em suas histórias. O anão disse que estava procurando coisas que havia no navio encalhado. Kindzu tinha medo do mar bravio, mas o barco novamente se moveu por conta própria, em direção ao navio.

Lá chegando encontraram diversas caixas empilhadas e o anão explorava o local. Kindzu foi surpreendido por um forte barulho de batidas e viu surgir uma âncora que dançava: só podia ser obra de um fantasma, talvez o mesmo que o encontrara nas areias do Tandissico, ou ainda o de seu pai. O jovem correu para procurar o anão e saírem dali, quando encontrou uma mulher.

Com as roupas molhadas, a mulher identificou-se como Farida e pediu que Kindzu saísse do navio. Ela tremia de frio e o rapaz a abraçou, atendendo ao pedido de que ouvisse a sua história.



Tuahir não tinha interesse em abandonar o ônibus em que estavam vivendo: a solidão era a maior garantia de segurança em meio à guerra. Muidinga enxergava mudanças na paisagem, mas o velho dizia que aquilo não passava de miragens. O menino queria sair para explorar outras regiões e Tuahir o enganava, andando em círculos com o garoto em meio à mata e retornando ao ônibus.

Numa dessas viagens falsas os dois caíram em uma armadilha, num buraco do qual não conseguiam sair. Muidinga se distrai com as lembranças da história de Kindzu e da tal mulher que ele encontrara, a Farida. Pela manhã surge um velho alto vestido com uma roupa comprida: ele lança uma rede na cova e carrega Tuahir e o pequeno como prisioneiros.

Na cabana Tuahir e Mudinga simulam estarem doentes, mas o velho não dava atenção. Ele se identifica como Siqueleto e conta sua história: toda sua família e vizinhança havia fugido de suas terras e só ele insistira em ficar para sobreviver em meio à guerra. Revela que pretende matá-los, pois também são fugitivos, como todos que o haviam deixado.
Tuahir pediu calma e contou a Siqueleto que havia uma esperança no horizonte: inventou um mundo em que a paz reinaria e que todos viveriam juntos, com bastante alimento. O velho acreditou na história e acabou caindo no sono.

Entra uma hiena na cabana, para o desespero de Muidinga, mas o animal comporta-se como domesticado. Siqueleto acorda e acaricia o bicho. O velho observa que Muidinga começa a escrever com um pedaço de pau no chão de terra e pergunta o que é aquilo. Tuahir inventa que aquele é o seu nome e Siqueleto fica admirando o desenho.

O velho corta a rede que prendia Tuahir e Muidinga, dando ao garoto uma faca e pedindo que ele escrevesse o seu nome numa árvore. Feito isso, o velho liberta os dois dizendo que seu nome já estava no sangue da árvore e que a aldeia iria continuar. Em seguida ele enfia o dedo no ouvido, até sair um som de estouro e começar a sangrar, definhando até a morte.

CADERNO DE KINDZU

Farida nasceu gêmea, sinal de mal agouro de acordo com as tradições de sua tribo. Por isso sua irmã foi morta e ela e sua mãe expulsas, indo morar no mato. Elas recebiam alimento de sua tia Euzinha, a única com quem mantinham contato.

Certo dia a tia Euzinha revelou a Farida que sua irmã estava viva: a mãe dela havia dado a criança a um viajante que não tinha filhos. A desgraça encobriu a tribo, que sofreu com uma forte seca. Os moradores capturaram a mãe de Farida para um ritual, do qual ela nunca retornou, e a menina tornou-se órfã desde então.


Após ser usada também em um ritual para chamar a chuva, Farida decidiu fugir da tribo. Andou até desmaiar e, quando acordou, estava na companhia de um casal de portugueses: Dona Virgínia e Romão Pinto. Ali ela foi educada como uma filha, mas também recebeu o interesse de Romão sobre seu corpo, assim que tornou-se mulher. Dona Virgínia parecia não notar as atitudes do marido: seu único pensamento era retornar à terra natal e ela devaneava em lembranças de parentes que nem existiam.

Desconfiada de seus próprios devaneios, acreditando que não conseguiria mais cuidar da menina, Dona Virgínia levou Farida para a Missão onde receberia os cuidados de um padre. Ela viveu ali por algum tempo, lia muito, mas sentia falta de suas origens e decidiu retornar à tribo.

No caminho passou pela casa de Dona Virgínia e quis visitá-la. Quem atendeu foi Romão, dizendo que a senhora retornaria em breve e que a menina poderia aguardar em seu antigo quarto. Farida acabou dormindo e acordou com o homem sobre si. Saiu pela manhã em direção a sua aldeia.

Tia Euzinha recebeu a sobrinha com receio da reação dos moradores. Em alguns meses Farida percebeu que estava grávida e contou à tia. Euzinha dizia que a criança iria sofrer por nascer mulata e seria melhor dizer que ela era albina – nesse caso, somente Farida receberia o desprezo da tribo. A menina teve o filho, Gaspar, mas não sentia-se mãe: entregou o garoto à Missão. Após algum tempo tentou recuperá-lo, mas foi em vão, já que o menino sumira.

Lastimando a perda do filho, Farida vagou sem rumo até descobrir que havia um navio encalhado na região. Foi levada à bordo pelos pescadores que saqueavam os mantimentos, mas eles não a levaram de volta à terra por não haver espaço nos barcos, cheios de suprimentos. Assim a moça ficou exilada, esperando que os donos do navio o fossem recuperar.


Por fim, Farida revelou a Kindzu que ela era um xipoco (fantasma) e que o havia chamado ao navio propositalmente, o estava esperando.



Muidinga ainda estava abatido pela morte do velho Siqueleto: com ele, morria toda a tradição de uma aldeia. Tuahir não compartilhava dessa tristeza.

Os dois caminhavam em círculos, como de costume, quando avistaram um buraco comprido que era cavado por um homem. Tuahir o cumprimentou com intimidade: era Nhamataca, seu antigo companheiro de trabalho. Ele disse que estava construindo um rio: suas águas serviriam a muitos homens, mas nunca à guerra.

Muidinga não acreditava nessa história, porém Tuahir lhe contou que o seu amigo cumpria o mesmo destino de seu pai: era um homem que vivia isolado, à beira de um enorme rio; durante dias uma figura distante o gritou e ele respondeu, mesmo sem entender qualquer palavra; certo dia a pessoa desapareceu e ele construiu uma jangada a fim de procurar pelo desconhecido; em meio às águas agitadas seu barquinho afundou, mas ele foi salvo pela tal pessoa, que era uma linda mulher em uma embarcação; os dois se amaram e Nhamataca foi filho deles, nascido no rio. Agora o homem compensava sua história, fazendo um rio com suas mãos.

Tuahir se dispôs a auxiliar Nhamataca. Muidinga, mesmo contrariado, também ajudou. Por muitos dias o trabalho foi duro, abrindo machucados nas mãos dos escavadores. Certa noite uma tempestade surgiu e inundou o rio que estavam construindo. Nhamataca foi levado por sua correnteza.

A chuva passou e a terra logo secou. Tuahir e Muidinga caminhavam sem encontrar o ônibus. O garoto tinha medo de estarem perdidos, mas o velho negava: afinal, o que era estar perdido?

À noite Tuahir demorava a dormir e disse sentir falta das histórias do Kindzu, que já era como um companheiro dos dois. Os escritos ficaram no ônibus, mas Muidinga já havia lido o caderno seguinte e se dispôs a contá-lo a seu amigo.

CADERNO DE KINDZU


Farida dormia no cabine do capitão e o anão ficava no porão, guardando os donativos. Kindzu estranhava a mulher, que dizia não ver o tchóti. Uma vez ele foi procurar o baixinho no porão e não mais o encontrou: será que ela estava certa? Por outro lado Kindzu observava no mar distante uma ilha com um farol, sobre o qual Farida havia comentado, mas que ele suspeitava ser fruto da imaginação da mulher: será estavam trocando de alucinações?

Farida contava e recontava suas histórias. Kindzu percebeu que ambos estavam ali por fugirem de suas terras, dividiam um mesmo destino. A mulher pediu que ele, quando retornasse à terra, procurasse por seu filho. Kindzu se comprometeu, como uma forma de se aproximar de Farida, porém ela começava a ter comportamentos estranhos: suas histórias se alteravam a cada vez que as contava e uma vez chegou a negar que tivesse um filho.

Refletindo sobre quantos dias já havia passado naquele navio, Kindzu pensava em ir embora, mas sentia-se preso a Farida. Ele se esforçava para lembrar seu objetivo, tornar-se um naparama, mas a paixão o tomava. Certa noite acabaram se amando.

Depois da relação, Farida aformou que Kindzu precisava partir. Ele tentou convencê-la de acompanhá-lo, porém a mulher não queria deixar o navio: quando seus donos o recuperassem e o levassem a uma terra distante, ela iria junto. Kindzu tentou argumentar que ela precisava achar seu filho, mas Farida refletiu que era melhor que ele já estivesse morto: a morte parecia melhor que aquela vida.



A cada vez que Muidinga lê um caderno de Kindzu a paisagem ao redor do ônibus muda: agora o verde começava a tomar conta, capim e árvores cresciam. Tuahir chama o pequeno para mais uma caminhada, com a intenção de buscar água, mas ele recusa. O velho ordena que ninguém deve ficar sozinho no ônibus, então Muidinga segue em um caminho diferente do seu companheiro.

O jovem observava o mato que crescia, até encontrar uma lavoura. Enquanto admirava o trabalho humano que há tanto tempo não via, Muidinga ouviu algumas mulheres cantando. Elas se aproximaram e uma delas, uma velha, bateu no menino. Ele não entende o que está acontecendo, tenta se comunicar, mas elas parecem falar outra língua. Uma a uma castigam o garoto, e depois lançam seus corpos nus sobre ele, mexendo em suas partes íntimas.

Muidinga acordou sendo carregado por Tuahir, que explicou que as mulheres estavam realizando uma cerimônia sagrada para espantar os gafanhotos que invadiam o terreno. Tal evento não podia ser visto por nenhum homem, como o menino havia feito.

De volta ao ônibus, Tuahir pede que Muidinga continue a leitura dos cadernos, mesmo com todo o cansaço após ter sido violentado pelas idosas.

CADERNO DE KINDZU

Kindzu passou a gostar mais da vida após sua experiência com Farida. Aquela mulher parecia ser a única pessoa a viver alheia ao clima de guerra que dominava a região, ainda que em meio a certa loucura pessoal. Quando Kindzu se despediu, ela pediu que ele não citasse o seu nome em terra, pois era odiada pelos moradores.

Chegando a Matimati, a praia estava vazia e tudo parecia mais belo que anteriormente. Kindzu não sabia por onde começar sua busca por Gaspar, o filho de Farida. Ao subir uma rua, viu descer um homem em uma cadeira de rodas, que de tão rápido acabou caindo. 

Ao ajudá-lo a se levantar, reconheceu Antoninho, o ajudante da loja de Surendra: o seu patrão agora estava com uma nova loja naquele povoado. Subindo a ladeira, a cadeira foi devolvida a Assane, o antigo membro da administração: ele alugava sua cadeira para a diversão do pessoal e também era o sócio de Surendra. Como Kindzu queria encontrar seu velho amigo, combinaram que Antoninho o buscaria na praia à noite para irem à sua casa.

Kindzu aguardava na praia quando ouviu uma confusão em uma roda de pessoas na areia. Chegando perto, observou que um velho cobrava para que vissem o corpo de uma mulher que ele havia pego no mar, com sua rede de pesca. O rosto da mulher não era estranho para Kindzu, mas ele não sabia de onde a conhecia. Antoninho chegou e dirigiram-se à casa de Surendra.

Assane o recepcionou e o convidou para beber enquanto o indiano não chegava. O antigo administrador contou que fora castigado, perdendo o movimento das pernas, quando ele se opôs a uma ordem para que matasse uma mulher, chamada Farida. Kindzu fingiu não se interessar no assunto, para não chamar atenção do homem. Em seguida Assane contou sobre sua loja, cuja inauguração seria em breve: Kindzu era um convidado. Os materiais eram de Surendra, porém era preciso alguém do local para representar o comércio perante as autoridades. Conversando sobre a guerra, Assane mostrou ao convidado os quartos, onde se amontoavam suprimentos em meio a dezenas de crianças: todas suas sobrinhas. Kindzu questionou se não poderiam buscar mais alimentos no navio encalhado, mas o homem comentou que era proibido ir a bordo, pois lá estava a tal Farida. Sobre Surendra, Assane revelou que em breve ele estaria fora do negócio: uma hora ou outra tudo seria nacionalizado, isso se o indiano sobrevivesse naquelas terras. O antigo administrador também mostrou a Kindzu um segredo seu: um tanque de guerra escondido no mato, dentro do qual havia uma criação de galinhas – se a loja não desse certo, teria um outro meio para sobreviver. Kindzu voltou a falar de mulheres para que Assane comentasse sobre a Farida novamente: ele apenas disse que ela era puta, muito puta.

Surendra chegou, trazido por Antoninho. O indiano, muito mais magro que antes, não reconheceu Kindzu e mantinha uma feição estática. O ajudante contou que seu patrão havia, durante o dia todo, construído uma jangada na qual embarcou sua esposa, Assma, para que ela voltasse à sua terra. Kindzu lembrou-se da mulher que fora encontrada no mar e descobriu de onde a reconhecera: era Assma! Sabendo disso, Assane, Antoninho e Kindzu foram à praia para salvá-la. Surendra continuou inerte. Assma foi internada no posto de saúde. Kindzu, que passou a dormir no mesmo quarto de Surendra, contava ao indiano sobre sua mulher, mas ele respondia que ela estava chegando na Índia. Em alguns dias Assma retornou à casa, também em estado de choque.

Uma noite Kindzu acordou com o som das cantigas de ninar que sua mãe cantava. Desesperado, saiu enrolado em um lençol e foi até o tanque abandonado, onde encontrou um galo em que reconheceu seu irmão, Junhito. Ele não tinha certeza do que estava enxergando, mas sentiu um pesar por estar à procura de Gaspar e enquanto se esquecia do próprio irmão. Voltou ao quarto convencido que aquilo fora somente uma ilusão.

Havia uma praça com uma estátua erguida em comemoração à Independência. Ali ficava uma mulher, vestida de negro, a observar a obra. Assane contou a Kindzu que se tratava da mulher do administrador. Havia naquela senhora alguma coisa que chamou a atenção do rapaz, mas ele não conseguiu realizar nenhum contato ela.

Chegado o dia da inauguração da loja, reuniram-se Assane, Surendra, Assma e o administrador com sua mulher, que seguia sendo observada por Kindzu. Uma multidão se juntou para ouvir os discursos, mas foi dissipada por tiros e gritos: diziam que iriam matar o indiano. Kindzu correu para trás da loja e viu o fogo tomar conta da casa. Antoninho surgiu carregando Surendra. Kindzu perguntava sobre Assma quando Assane chegou para consolar o indiano.

Caminhando pela tragédia, Kindzu cruzou com um homem no chão que ele pensava estar vivo e tentou lhe dar água, mas um dos sobrinhos de Assane contou que ele já estava morto. Somente no dia seguinte carregaram seu corpo, entre moscas e poeira. A vila toda havia se tornado uma casa mortuária.




À noite, com chuva, Tuahir reclamava não ser possível fazer uma fogueira, já que a lenha estava molhada. Muidinga estava pensativo e o velho dizia que ele precisava de uma mulher, garantindo que era melhor envolver-se com uma prostituta do que se apaixonar verdadeiramente.

Lembrando-se da iniciação do rapaz com as velhas na plantação, Tuahir considerou que ele merecia uma melhor experiência: pôs a mão entre as pernas de Muidinga e pediu que ele pensasse que era a mão de uma mulher, enquanto ele faria o trabalho.


Adormeceram e acordaram tontos, como se tivessem bebido. Tuahir estava alegre e ria alto. Muidinga lembrou que deveriam fazer silêncio e lamentou mais uma vez não saber nada de seu passado. O velho contou que havia levado o garoto a um feiticeiro que lhe apagou a memória, pois assim teria menos sofrimentos.

Percebendo que a história de Kindzu cobria esse vazio da memória de Muidinga, Tuahir pediu ao garoto que continuasse a leitura dos cadernos.

CADERNO DE KINDZU


Kindzu estava decidido a deixar a casa de Assane para procurar por Gaspar. Seu objetivo era procurar tia Euzinha, que devia estar em um campo de deslocados, mas não tinha ninguém para guiá-lo até lá. Antoninho o levou ao bar, onde poderiam encontrar alguém para ajudá-lo.

Dois homens se destacavam entre os embriagados do local: Abacar Ruisonho, um gordo que era chefe dos serviços de segurança, e Quintino Massua, um magricela que esnobava a todos dizendo que ficaria rico. Chegou mais um homem, com uma pistola na cintura, que fez com que todos se aquietassem: era Shetani, um ex-combatente. Antoninho disse que era melhor irem embora, mas Kindzu foi chamado ao balcão por Abacar, que lhe contou que procurava proteger Quintino, que falava demais. O magrelo continuava se enaltecendo e criticando a guerra, até que xingou Abacar e este lhe deu um soco, deixando-o desmaiado.

Entrou no bar uma mulher acompanhada de um cachorro: era Juliana Bastiana, uma prostituta cega. Ela mandou o animal para fora e identificou, pelo cheiro, que havia um estrangeiro no local. Ficou a conversar com Kindzu, perguntando se ele teve alguma notícia do brigadeiro Silvério Damião, seu amante, e deu-lhe algumas cartas dele para que o rapaz as lesse.

Kindzu aproveitou para perguntar se a mulher conhecia alguém que poderia lhe ajudar como guia em sua viagem. Juliana somente perguntou se o motivo da expedição era de amor e, como foi confirmado, ela se dispôs a ajudar. Ao saber que se tratava de uma criança desaparecida, a mulher preveniu Kindzu que ele poderia ter se juntado a um dos bandos que fazia a guerra e ordenou que, caso o encontrasse, não dessa a ele caneta nem enxada, mas somente uma arma: era a única coisa que tinha algum valor naqueles tempos.

Shetani chamou a prostituta e entregou-lhe um embrulho. Chorando, ela o mostrou para Kindzu: eram as orelhas de seu cachorro. O rapaz se enfureceu, mas a moça o acalmou, dizendo que havia pedido que o matassem, pois o animal já estava doente.

Após algumas horas o bar estava mais vazio e Juliana contou a Kindzu quem seria o seu guia: Quintino, que havia sido deixado deitado no meio da rua. Como o bêbado não acordaria tão cedo, Kindzu saiu caminhando e cantando uma canção para se distrair.

No meio da madrugada, Kindzu voltava para encontrar Quintino quando um vulto se aproximou. Por impulso, ele derrubou a pessoa ao chão e surpreendeu-se ao ver que era Carolinda, a mulher do administrador. Ela tinha alguma semelhança com Farida e demonstrava desejo por Kindzu. Foram ao curral da Missão, onde poderiam se amar.


Tuahir sugere que a estrada estava a andar, lhes proporcionando os encontros com Siqueleto, Nhamataca e as velhas, assim como as mudanças da paisagem: o ônibus ficava imóvel.

Muidinga também percebia esse movimento e Tuahir lembrou-se de seu trabalho na estação de trem, ambiente de tantas viagens que ele cuidava com gosto, porém não mais existia após a guerra. Ele revelou que tinha vontade de cuidar do ônibus como se fosse sua estação, mas acreditava que não valia a pena. O velho retirou do bolso um apito que guardava como amuleto e entregou-o ao garoto.

Muidinga não admite a postura derrotista de Tuahir e afirma que se ele lhe deu o apito, é porque sabia que havia esperança. O velho pede que o menino volte a ler os cadernos, que era uma forma de se entreterem, e improvisa uma vassoura com um ramo de palmeira para limpar o ônibus.

Tuahir junta algumas cinzas numa velha tampa e as joga ao redor do ônibus. Diz a Muidinga que estava adubando a terra para as próximas chuvas.

CADERNOS DE KINDZU

Kindzu acordou sem a presença de Carolinda: havia somente um colar seu esquecido. Ele decidiu não perder tempo e procurar logo Quintino, que seria seu guia. Porém, ao encontrá-lo, ele ainda estava embriagado, sendo carregado por Shetani, que convocou Kindzu para ajudá-lo.

Encontraram-se com Estêvão Jonas, o administrador, e sua escolta. Ele chamou Carolinda, sua mulher, que identificou Kindzu como responsável por um crime: ter rasgado e atirado notas de dinheiro na praia. Ela justificou sua demora para chegar em casa por ter ficado travada quando se inclinou para pegar o dinheiro. O administrador dispensou sua mulher e os demais homens, perguntando a Kindzu, a sós, se ele teria comido Carolinda. O aventureiro negou, então seria preso por desrespeitar um símbolo da nação, junto a Quintino, que também havia praticado este ato.

Quintino chorava ao mesmo tempo em que recuperava sua sobriedade. Kindzu achou que era o melhor momento de propor o acordo com seu futuro guia. O homem aceitou prontamente, pois também tinha interesse em fugir dali: ele era perseguido pelo fantasma de seu antigo patrão.

Certa vez Quintino invadiu a casa onde havia trabalhado para Romão Pinto, com o intuito de “nacionalizar” seus pertences. Ela fora abandonada por sua mulher, que ficara viúva: Romão havia sido enterrado ali mesmo, sem as devidas cerimônias. O fantasma do patrão surgiu do chão, intimidando Quintino e perguntando sobre sua mulher. Ele relembrou o motivo de sua morte: ter se relacionado com uma mulher menstruada, o que gera uma maldição na tradição africana.

Salima era mulher de Abdul, homem que Romão imaginava também estar morto: ele havia forçado a amante que também se relacionasse com o marido como punição, para que ele tivesse o mesmo destino que o seu. Porém Quintino informou que ele ainda vivia e Romão imaginou que havia sido enganado pela mulher.

O patrão ainda perguntou por Farida, relembrando sua relação com ela. Quintino informou que ninguém sabia o paradeiro da moça, nem mesmo seu filho. Romão exigiu que seu empregado lhe desse mais informações, que chamasse sua esposa, mas Quintino negou e, desde então, era perseguido pelo fantasma.

O guia estremecia ao contar esta história e Kindzu estava ansioso para deixar aquele lugar. Carolinda apareceu e libertou os dois, confessando a seu amante que inventara aquela história para não deixar que ele partisse, mas concluiu que ninguém merecia ficar preso àquelas terra e também seria melhor mantê-lo longe, impossível. Kindzu foi empurrado por ela e acariciado onde as cordas o haviam prendido: ele enxergava ali uma grande prova de amor, e concluiu: “o melhor da vida é o que não há-de vir”.


Muidinga se lembra do que Tuahir havia lhe falado, que todos ficaram sós com a guerra que tomou conta do país, e se entristece. Ele tem uma ideia e a propõe ao velho: eles iriam brincar que eram Kindzu e seu pai, Taímo. Tuahir refutou o jogo, dizendo que não se deveria mexer com os mortos. Muidinga insistiu, dizendo que brincariam com respeito, e o chamou de pai. O velho entrou na brincadeira, chamando o companheiro de Kindzu.

Os dois dialogam como se fossem os personagens do escrito, indagam pelo destino de Gaspar e compartilham sofrimentos. Muidinga começa a se incomodar com a troca de papéis, sentindo-se injustiçado por ter de cuidar do seu pai quando era ele quem mais precisava de cuidados. O garoto chama Tuahir de tio e o velho questiona por que não o chamava de pai. Muidinga chora e recebe o carinho do velho em sua cabeça.

Olhando nos olhos de Tuahir, o menino enxergou uma bondade que ele nunca havia demonstrado: o velho dizia ter medo de exibir seu coração infantil. Muidinga sentiu que pela primeira vez tinha um pai. Tuahir passou a dar risadas e fazer palhaçadas para divertir Muidinga e revelou que tudo o que ele podia ensinar era como ser criança para sempre.

CADERNO DE KINDZU

Kindzu tinha um dia marcado para iniciar sua viagem, mas Quintino não apareceu, conforme o combinado. Ele havia se embriagado novamente, após um novo encontro com o fantasma de seu patrão. Kindzu decidiu procurar pela velha Virgínia, a mãe de consideração de Farida, para tentar alguma informação sobre Gaspar. Quintino orientou que não se mostrasse à mulher, pois ela não gostava do contato com outras pessoas.

Dona Virgínia Pinto estava rodeada de crianças, únicas criaturas com as quais se comunicava. Seus pensamentos são confusos e alternam o passado com o futuro: ela espera pelo futuro marido, quando real já é defunto. A senhora também criava sapos no quintal, alimentando-os com moscas, somente para ter a sensação de que alguém sentiria sua falta, caso partisse. As crianças pediram que ela lhes contasse uma história de seu avô, e Virgínia atendeu.

A velha contava e recontava histórias trocando nomes e personagens a cada vez, mas as crianças não ligavam. Ela pedia silêncio, dizendo que era preciso estar atenta para quando Deus a chamasse. Depois chamou as crianças para um pátio onde havia um poço e lança nele uma pedra: o som que dali sai, segundo ela, é o choro da água por uma mulher que perdeu seu marido por uma maldição, há muito tempo.

Kindzu imagina que a única maneira de falar com Virgínia é fingindo-se criança. Ele se aproxima e pergunta sobre Gaspar, lembrando-a de Farida. A velha diz que não falaria do assunto ali em sua casa, pois isso atrairia fantasmas, e pede que a siga até sua antiga casa. Lá ela revela que Gaspar aparecera certa vez em sua casa, deitado na varanda como se estivesse morto. Ela ia enterrar o menino, mas as crianças estavam curiosas para saberem sua história, então fizeram um acordo e o manteriam preso no poço, que estava seco. O garoto, entretanto, não falava nada. Um dia uma chuva forte encheu o poço e pela primeira vez ele falou, pedindo ajuda. Em seguida contou sua história, mas era muito triste e as crianças não gostaram dela, exigindo que o garoto fosse lançado novamente ao poço ou enterrado, mas Virgínia o defendeu e se dispôs a cuidar dele, sabendo que era o filho de seu finado marido.

A velha parou de falar e Kindzu indagou o que aconteceu depois, mas ela não sabia: o garoto havia fugido. Gaspar sabia da tia Euzinha e talvez tenha ido viver com ela. Virgínia pede silêncio, pois ouvia alguém se aproximando.

O administrador Estêvão Jonas havia recebido uma mensagem de Quintino para que comparecesse à antiga casa de Romão Pinto. Lá, assustou-se com o fantasma do português, que lhe pediu ajuda para carregar seu caixão para fora e lhe fez uma proposta: que fosse seu representante em seus negócios, usando do dinheiro que havia ficado para Virgínia como capital. Ele poderia usar do discurso racial para reaver a fortuna e nunca descobririam que havia um branco por trás da transação. Estêvão gostou da oportunidade e comprometeu-se com o fantasma, assegurando que não tomaria qualquer decisão sem consultá-lo.

Romão retornou à casa e Estêvão foi surpreendido por sua esposa, Carolinda, que questionou se ele estava se encontrando com alguma mulher. O administrador explica seu encontro sobrenatural e a mulher o repreende por se envolver com os antigos colonizadores, considerando aquilo uma traição, mandando-o embora.

Após assistir esta cena, Virgínia decide retornar a sua casa, para alimentar seus sapos, e recusa a companhia de Kindzu: ela só quer ser vista com crianças, pois é uma velha tonta que não sabe nada de dinheiro – sua segurança era sua loucura.

Carolinda ouviu a conversa e encontrou Kindzu: eles se beijavam quando ele a chamou de Farida. A mulher estremeceu, o rapaz negou que tivesse falado o nome errado e ela aceitou. Carolinda lembrou-se de seus dois maridos e passou a noite a contar suas mágoas. O primeiro era um combatente da independência, morto pelos próprios companheiros – desde então ela enxergava traição em qualquer lugar. O segundo, Estêvão, apareceu na cidade com mochila nas costas e espírito aventureiro, atraindo a jovem que desejava sair daquele lugar o mais cedo possível. Porém Estêvão se demonstrou um homem conformado que não tomava as atitudes que sua mulher esperava.

Um dia Farida apareceu em Matimati procurando por seu filho e Estêvão lhe deu muita atenção. Carolinda sentiu um forte ciúme da mulher, ainda mais quando soube que ela havia embarcado no navio naufragado: Farida ao menos tinha uma esperança de deixar aquelas terras. Para se vingar, convenceu o marido que a mulher deveria ser retirada do barco, pois poderia denunciar que alguns de seus homens recolhiam a melhor parte dos bens que ali estavam.

Depois de Kindzu reafirmar que não falara o nome da mulher, Carolinda entregou-se ao seu amante.



Tuahir admirava como a paisagem ao redor do ônibus sofria transformações com o tempo. Agora eles estavam em frente a um imenso pântano, de onde era possível ouvir o barulho do mar. Muidinga quis ver as águas de perto e seguiram os dois em meio ao lamaçal.


A longa caminhada invadiu a noite, quando grandes mosquitos atormentavam os caminhantes. No dia seguinte Tuahir tinha as orelhas inchadas de tanta picada e começou a sentir febre. Ele dizia que o mal-estar era devido ao barulho de pássaros que os cercavam, mas Muidinga não enxergava nenhum. O velho pendurou-se de ponta-cabeça numa árvore para ajudar seu “sangue fraco”, conforme sua mãe fazia com ele quando criança. O garoto já estava arrependido de ter saído do ônibus e Tuahir pede que o ele saia por aí espantando as aves que o incomodavam.

Muidinga caminhava pelo pântano, de forma monótona, até encontrar algumas garças muito belas. Ouve também o som de uma xigovia (flauta feita com a casca de uma fruta), tocada por um pastor que, ao se aproximar, lhe conta uma história.

Ele possuía um boi que aparentava muita tristeza. O animal tinha a visão fixa em uma garça que o rodeava e não respondia aos comandos do pastor. Certa noite o boi começou a mugir para a lua cheia e foi reduzindo de tamanho, até transformar-se numa garça. Como ave, ele encontrou-se com aquela outra para a qual antes só olhava. Dali em diante, toda noite de lua cheia o mesmo acontecia. 

Até que, em certo ano, a lua não apareceu por quatro meses seguidos. O boi passava as noites em sua forma original e acabou morrendo logo.


Como já era tarde, Muidinga se despediu do pastor e voltou para encontrar Tuahir. O velho tinha um novo plano: ele juntara alguns paus e montara um pequeno barco, no qual seguiriam remando até o mar. Ele pede que, caso morra, não seja enterrado na lama, pois se transformaria em peixe. Muidinga promete que, caso isso ocorra, entregará seu corpo às águas, como fizeram com Taímo.

O barquinho já desembocava em águas cercadas de areia clara quando Tuahir pede a Muidinga que lhe dê carinho e que deite ao seu lado, para aquecer seu corpo. O garoto fica receoso de estar se deitando com a morte.

CADERNO DE KINDZU

Sem poder contar com a ajuda de Virgínia, que estava imersa em suas loucuras, Kindzu procurou Quintino para irem em busca de tia Euzinha. Ele lembrou o aventureiro que era preciso escolher: ou iriam atrás dos naparamas, ou atrás de Gaspar. Kindzu queria as duas coisas, mas Quintino considerou que deveriam buscar a criança.

Após uma longa caminhada, Quintino propôs que ele fosse sozinho até o campo, que já estava próximo, enquanto Kindzu, que estava exausto, poderia descansar. O guia partiu e Kindzu se apoiou em uma árvore que se revelou demoníaca: o chão ao seu redor era formado de ossadas de animais. Ao se afastar do tronco, ouviu o canto de um pássaro: era a previsão de seu pai, um mampfana, a ave matadora de viagens. Kindzu chamou desesperadamente por Taímo e, com um trovejar, a ave se partiu em duas.

Kindzu golpeou a árvore, de onde saiu uma voz fantasmagórica: era o mesmo xipoco que o encontrara nas areias do Tandissico, era seu pai. Kindzu disse estar cansado, desejava retornar às suas terras. O fantasma perguntou o que ele estava escrevendo em seus cadernos e o rapaz contou que nem sabia ao certo, escrevia conforme sonhava. O espírito achou bom que seus escritos ensinassem alguém a sonhar, quando os lesse. Kindzu perguntou o que estava acontecendo com a terra e o xipoco respondeu que ela estava a andar, procurando os sonhos das pessoas e os costurando uns aos outros. Kindzu queria falar mais alguma coisa, mas o espírito se desfez.

Quintino chegou espantado pelo que encontrara no campo de refugiados: milhares de pessoas famintas em meio a destroços. Kindzu foi até lá e encontrou a tia Euzinha, que perguntou aflita sobre sua sobrinha Farida. O rapaz apresentou-lhe o colar que recebera de Carolinda e a velha se perturbou: ao saber que ele pertencia à mulher do administrador, entendeu que ela se tratava, enfim, da irmã gêmea de Farida. Pediu o colar para si, pois acreditava que ninguém deveria influenciar na história das duas, nem revelar os fatos de seu passado. Kindzu deveria se concentrar em encontrar Gaspar, que havia sido levado pra outro campo de refugiados – não se sabia qual era. Enquanto isso, poderiam passar uns dias com tia Euzinha.

À noite os dois aventureiros estavam incomodados nos esconderijos que serviam de dormitório e saíram para caminhar. Quintino avistou uma bela adolescente e foi se encontrar com ela. Kindzu continuou a andar e foi surpreendido por Carolinda, que estava fugindo de Matimati: pela manhã ela seguiria viagem para outra cidade. Os dois avistaram Quintino e sua amante, e Carolinda avisou que aquela mulher, Jotinha, não era boa companhia, tinha fama de feiticeira. Os casais se encontraram e Jotinha propôs que fossem todos dormir no abrigo onde se guardavam os mantimentos.

Era um local pequeno, os corpos ficaram amontoados, mas ainda era mais confortável que os esconderijos. No meio da noite Kindzu sente alguém acariciar seu corpo: era a mão de uma mulher, mas não era Carolinda. Ele sentiu no corpo dela marcas de enormes tatuagens. Era Jotinha que se entregava ardorosamente, no escuro.

Pela manhã Carolinda reclamava dos sacos de alimentos que apodreciam enquanto milhares passavam fome: era obra de Estêvão, seu marido, que ordenou que só distribuíssem os mantimentos quando ele estivesse em visita, assim sua figura seria bem vista pelos refugiados.

Do lado de fora, Quintino tentava ajudar tia Euzinha a pegar lenha, mas a velha fazia questão de seu trabalho: os velhos, quando não ajudavam, eram vistos como um peso e acabavam abandonados.

Carolinda soube que novos refugiados chegariam em breve e haveria uma festa de recepção. Propôs que eles distribuíssem naquela oportunidade todos os alimentos que estavam estocados.

Chegando ao centro do campo, entretanto, havia muita agitação. Pela manhã, quando o fogo foi aceso, as panelas começaram a rachar: isto era sinal de que alguém namorou durante a noite, o que era proibido naquele lugar. Suspeitavam de Quintino e mandaram ele e Kindzu para longe.

Kindzu encontrou Jotinha em meio a alguns arbustos. A mulher variava, contando sobre uma visão que tivera de si mesma saindo do campo de refugiados, e em seguida rodopiou, cercada de um arame farpado fantasioso que a fazia sangrar. Kindzu quis abraçá-la, mas sentia os arames o ferirem. Correu de volta ao campo para pedir socorro, mas tia Euzinha o orientou a se esquecer do que passou e se distanciar logo dali. Quintino deveria ficar, pois estava enfeitiçado por Jotinha.

À noite ocorreu a festa, que foi muito alegre, mesmo sem que tivessem distribuído os alimentos guardados. Tia Euzinha dançava e gritava que a guerra iria acabar. Kindzu pediu que ela parasse, pois já estava tonta, mas ela respondeu que o mundo é que estava a rodar: ela estava parada. Caindo ao chão, tia Euzinha despediu-se do mundo sem que ninguém, além de Kindzu, notasse. Ele cobriu seu corpo e saiu dali rapidamente, pelo mesmo caminho que havia chegado: queria chegar a Matimati e encontrar Farida, ainda que não tivesse achado seu filho.


A estrada se transformara na areia branca e o mar estava à frente do ônibus. Tuahir, inerte, é levado em seu banco por Muidinga para o alto das dunas, onde arbustos lhes dão sombra.

O velho pede que seja colocado num barco que está ali próximo, para que quando a maré subisse ele fosse levado pelas águas. Muidinga descobre que a embarcação se chama Taímo. Tuahir duvida da coincidência, imagina que o menino esteja a brincar.


O garoto ainda quer ler o último caderno antes da partida de seu companheiro, mas o velho pede que espere a maré subir para continuar a história. Ele ainda indaga se o menino realmente havia lido o que estava escrito, ou se havia inventado algumas histórias, mas Muidinga nega.

O barulho das ondas, que já alcançam o barquinho, se mistura à voz de Muidinga. Tuahir começa sua viagem num “mar de infinitas fantasias”, em cujas ondas “estão escritas mil estórias, dessas de embalar crianças do mundo inteiro”.

CADERNO DE KINDZU


Kindzu regressava sem qualquer esperança: já não tinha a amizade de Quintino, nem teria o amor de Farida, já que não encontrara Gaspar. Chegou à casa de Assane e recebeu a notícia de que Farida não estava mais a esperá-lo.

Um dia Assane mandou que Antoninho fosse ao navio e lá ele encontrou a mulher. Ela pediu informações de Kindzu, duvidando que ele conseguiria encontrar seu filho. Pediu a Antoninho seu barco emprestado, pois precisava ir à ilha do Farol para acendê-lo, assim alguém descobriria o navio encalhado e a tiraria dali. O rapaz viu Farida chegar ao local e, em seguida, uma enorme explosão incendiar a ilha toda.

Kindzu não acreditou na história de Antoninho e imaginou que ele a tinha matado, mas Assane garantiu que o rapaz tinha até arriscado sua vida para tentar salvá-la, indo com um bote para o meio do fogo. Kindzu informou que pretendia partir e Assane informou que sairia um ônibus de sua empresa, que estabeleceu em parceria com o administrador. Kindzu desconfiou que a morte de Farida tivesse sido apenas mais um serviço prestado entre aqueles homens.

À noite diversas questões passavam pela cabeça de Kindzu e ele resolve relatar seus sonhos, que eram como fantasmas revelando segredos. Ele sente que assim se livrará de suas suspeitas e seus desejos de vingança: quer esquecer Farida, Carolinda, Quintino… Quer ir mar adentro, como Assma, ou viver como uma sombra, como sua mãe lhe ensinou.

No sonho, ele andava por um vale muito iluminado. Surgiram centenas de pessoas, vestidas em farrapos, lideradas pelo feiticeiro de sua aldeia, que dizia ter encontrado o local que procuravam. Ele levantou seu cajado e entoou um longo discurso em que previa tempos sombrios, seguidos de uma redenção final, que só ocorreria se todos fossem capazes de deixar morrer os animais em que foram convertidos por conta da guerra.

Em seguida o feiticeiro derramou um líquido sobre seus ombros e sobre a cabeça de cada um dos presentes. Todos tombaram ao chão e se transformaram nos mais diversos animais, espalharando-se pelo local. Kindzu procurou o próprio corpo, com medo de também ter sido afetado, mas estava normal.

No meio do sonho surgiu um galo: era Junhito! O menino estava se humanizando, meio bicho, meio gente. Ao seu redor apareceram Romão Pinto, Estêvão, Shetani, Antoninho e outros milicianos, querendo depenar a pobre criatura, conforme o velho Taímo havia previsto. Kindzu, ao analisar as suas vestes, descobriu que era, enfim, um naparama! Os inimigos se amedrontaram e fugiram, mas Junhito sofria na sua transformação em garoto. Kindzu cantou uma das canções de sua mãe e assim o menino retomou sua forma original. Surgiu a mãe de Kindzu, com mais um bebê no colo, e levou consigo Junhito, que agradecia ao irmão pela ajuda.

Kindzu sentia que precisava encerrar seu sonho, pois agora ele estava em uma estrada pela qual ele não andava, mas ela própria se deslocava, alternando paisagens, levando-o desordenadamente. De repente ele se viu em frente a um ônibus queimado. Sua cabeça recebeu um baque e o mundo pareceu se rebentar: desfaleceu, deixando no chão a mochila com seus cadernos. Uma voz interior, a voz de seu pai, pede que ele continue. Kindzu segue pela estrada e avista um garoto que carrega em suas mãos os seus cadernos, reconhecendo nele Gaspar. Ao gritar seu nome, o garoto estremece e deixa cair as folhas ao chão. Os escritos se desfazem com o vento e se tornam páginas da terra.

Obs. resumo feito por resumoporcapitulo.com.br


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